
O Termo Territorial Coletivo é um modelo de gestão coletiva do território que conjuga a liberdade individual e a força do coletivo a partir da separação entre a propriedade da terra e a das moradias. Surgido nos Estados Unidos na década de 1960, no âmbito do movimento negro na luta por direitos civis, o modelo (Community Land Trust, em inglês) tem como objetivo garantir a segurança da posse e o desenvolvimento territorial e comunitário protagonizado pelos moradores. Neste mês de agosto, celebrando o Dia Nacional da Habitação e os sete anos do Projeto Termo Territorial Coletivo*, RioOnWatch destaca este projeto que, ao lado das comunidades, está transformando os paradigmas de direito à moradia em favelas e periferias do Brasil.
Apesar de ter surgido em áreas rurais, o modelo do Termo Territorial Coletivo encontrou o terreno ideal para se desenvolver nas cidades a partir da década de 1980. Houve um rápido crescimento do número de TTCs nos Estados Unidos na década de 1990, seguido de uma difusão de experiências deste modelo na Europa e no Sul Global a partir do início dos anos 2000. Existem, atualmente, mais de 500 TTCs pelo mundo, espalhados por mais de dez países. O sucesso do modelo no alcance de seus objetivos garantiu sua inclusão na Nova Agenda Urbana—pacto internacional firmado em 2016 entre os países membros da Organização das Nações Unidas (ONU), voltado para a implementação de políticas urbanas que garantem o direito à cidade para todos.

Foi em 2004 que, pela primeira vez na história, um conjunto de favelas consolidadas criou um TTC, inaugurando um novo paradigma de atuação para o modelo através da iniciativa Fideicomiso de la Tierra Caño Martín Peña, criada por sete favelas que margeiam o Canal Martín Peña, território na zona urbana de San Juan, capital de Porto Rico. O sucesso desta experiência pioneira inspirou a reflexão sobre o modelo no Brasil, motivando, em 2018, o início do Projeto TTC, gestado no intercâmbio com técnicos e moradores de ambos os países para pensar os desafios e possibilidades do modelo.
Para além do pioneirismo inspirador das sete comunidades de Porto Rico, a reflexão sobre o TTC no Brasil foi também impulsionada pela forte onda de remoções provocada pela preparação da cidade do Rio de Janeiro para os megaeventos, ocorridos entre 2009 e 2016, o que afetou numerosas favelas na cidade, inclusive a Vila Autódromo cujos moradores tinham títulos de concessão de uso oficiais do Estado. A impotência diante da ação do poder público neste processo, mesmo com leis protetivas no ordenamento jurídico nacional, acendeu o alerta sobre a necessidade de novos caminhos para a luta pela permanência e moradia em favelas e outras comunidades urbanas.

Alinhado ao entendimento já presente nas favelas de que cada um é dono de sua casa e que a comunidade deve ser cuidada por todos, especialmente diante da ausência do poder público, o modelo TTC apareceu no contexto das favelas cariocas como um caminho altamente promissor. A possibilidade de formalização dos arranjos e pactos sociais já existentes com a garantia da permanência dos moradores e seu empoderamento—a partir da mobilização—para um desenvolvimento comunitário e territorial protagonizado pelos mesmos começava a ganhar terreno através do Projeto TTC.
A partir de novembro de 2018, o Projeto TTC sai do papel para se estruturar em três frentes de atuação prática no Brasil: mobilização comunitária, difusão nacional do modelo, e incidência política. Desde então, os impactos e as conquistas alcançadas pelo Projeto TTC incluem:
- Alcance de mais de 2600 pessoas que, através das atividades do projeto, passaram a conhecer e/ou se aprofundaram sobre o modelo e suas potencialidades;
- Oficinas realizadas em sete cidades das cinco regiões do país (São Carlos, São Paulo; Florianópolis e Garopaba, Santa Catarina; Salvador, Bahia; Belém, Pará; Minas Gerais; e Brasília, Distrito Federal), contribuindo com a difusão nacional do modelo;
- 139 oficinas comunitárias, realizadas em 10 comunidades do município do Rio de Janeiro, resultando em dois estatutos sociais elaborados, cerca de 800 moradores envolvidos e dois projetos arquitetônicos de melhorias territoriais em processo de construção;
- Grupo de trabalho do projeto com 361 pessoas de 170 instituições, incluindo o Observatório das Metrópoles, a União por Moradia Popular, o Núcleo de Terras da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, dentre muitas outras que se destacam no cenário da luta por moradia no Brasil;
- Inclusão do TTC no Plano Diretor de cinco cidades (São João de Meriti, Rio de Janeiro, Biguaçu, Maricá e Magé), com iniciativas em andamento para inclusão no Plano Diretor de mais quatro municípios (Brasília, São Carlos, Cametá e Garopaba);
- Realização de 27 eventos online sobre temas relacionados ao modelo do Termo Territorial Coletivo, com participação de mais de 1500 pessoas de diversas partes do Brasil e mundo
- Participação no 11º Fórum Urbano Mundial, em 2022, na Polônia;
- Aprovação de projeto de lei federal (PL 5618/23) na Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados em 2025; e
- Apresentação de projeto de lei na Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 2025.

Das três frentes de trabalho desenvolvidas pelo Projeto TTC, foi a mobilização comunitária que, até hoje, produziu os impactos mais profundos nos territórios parceiros, engajando maior participação e contribuindo com um maior nível de organização dos moradores, bem como uma esperança renovada na formalização dos arranjos e pactos existentes em seus territórios.
Moradora do Conjunto Habitacional Esperança, localizado na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá na Zona Oeste do Rio, Neide Mattos conheceu o Projeto TTC em 2020. No entanto, antes mesmo de conhecer o TTC, o Grupo Esperança já aplicava, em sua realidade local, princípios que baseiam este modelo de gestão coletiva: através de recursos de autogestão e da organização de mutirões, moradores mobilizaram um coletivo e, ao longo de anos, construíram moradias dignas para 70 famílias.
“O TTC vem como uma base sólida para que a gente possa ter a garantia de se manter na terra, e que eu possa transmitir isso pros meus filhos, todo o sacrifício, todo o empenho de longos anos de reunião, para que eu tivesse esse troféu que é minha casa, e que isso fique de benefício pros meus filhos. Ou, se os meus filhos não quiserem, que essa moradia venha para uma família que não tenha condições de entrar num programa do governo pra conseguir uma casa. Que essa casa seja uma moradia facilitada para uma família que realmente precise de ter uma casa para chamar de troféu também.” — Neide Mattos
Ailton Lopes é cria do Trapicheiros, comunidade centenária na Tijuca, Zona Norte do Rio, que luta pela regularização fundiária. Desde que foram apresentados ao modelo, Ailton e sua comunidade reconhecem o TTC como caminho imprescindível à garantia do direito à terra para moradores de assentamentos informais.
“O TTC é uma ferramenta protetiva, que tem o intuito de proteger a comunidade contra o processo de remoção e da especulação imobiliária. O TTC é constituído por um grupo de aliados técnicos, voluntários e lideranças comunitárias, e tem dado certo… Nós acreditamos que isso vai dar muito certo no Brasil.” — Ailton Lopes

Para Antonio Xaolin, líder comunitário na Rocinha, Zona Sul do Rio, o TTC representaria um alicerce contra remoções compulsórias de moradias, violência comum ao processo histórico de desenvolvimento de tantas cidades no Brasil.
“O TTC para as favelas, para as periferias, é de grande valia pois ele combina a posse da terra, que se trata de uma posse coletiva, e o direito individual de morar. O Projeto TTC para mim, tem muita importância para as favelas.” — Antonio Xaolin
Todas essas conquistas têm pavimentado o caminho para a consolidação de uma primeira experiência brasileira de TTC. Além disso, demonstram o potencial do modelo como alternativa de garantia ao direito à cidade e aos direitos básicos que se iniciam a partir do lar. Para os próximos anos, a estratégia passa por dialogar com ainda mais atores, consolidar parcerias e se aproximar ainda mais das favelas e outras comunidades parceiras para construir, em conjunto, um novo futuro a partir do TTC.

*O Projeto TTC e o RioOnWatch são ambas iniciativas gerenciadas pela organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras.
